1.
— Café?
— Pode deixar aqui do lado, por favor.
A copeira pousou a caneca sobre o surfbook — o equipamento metade mesa, metade computador que as redações de jornais haviam há pouco adotado como padrão. Os olhos de Jef alternavam-se entre a atenção fixa ao monitor, por trás dos óculos de aros finos, e rápidas olhadelas no teclado. Monitor e teclado ainda eram chamados assim por costume, numa referência aos periféricos dos antigos PCs. O surfbook os mantinha apenas como imagens virtuais numa grande tela sensível, dobrável à moda dos velhos notebooks.
Jef também não perdia o costume de murmurar ao digitar.
— Acho que foi publicado em janeiro...
[pesquisa FIND9]
[canal: JSC]
[palavra-chave: Desterro especial nova_cidade]
[período: 01/01/2029 a 31/03/2029]
Um aplicativo instalado no surfbook simulava o som de um antigo teclado ao digitar. Jef achava que seu cérebro trabalhava melhor ritmado pelo saudosismo do ruído. Por isso franziu levemente a testa quando uma voz atrás de si quebrou a melodia das teclas.
— Vai mesmo para aquele inferno?
Jef fez um meneio de cabeça para o lado, apenas para indicar que havia ouvido o editor.
— Aquilo já foi um inferno pior. E pode voltar a ser.
Notando que o editor se afastava, olhou pela janela antes de prosseguir. Podia ver as águas barrentas do Itajaí-Açu. Do outro lado do rio, avistava parte do prédio da prefeitura (que tinha sido poucos anos antes também a sede provisória do governo estadual). Havia chovido na madrugada e a manhã era cinza e quente. Certamente voltaria a chover no início da tarde, ou antes. O reflexo das nuvens nas águas lentas do rio o fizeram pensar no tempo.
Quase todos os dias eram assim. Um clima relativamente novo, mas já típico e integrado à paisagem. Só os mais velhos se preocupavam com alguma chuva mais intensa. Ainda havia famílias assombradas por lembranças antigas, de quando as cheias do rio costumavam ter como resultados tragédias humanas e edições históricas do jornal. Com as novas tecnologias importadas no norte europeu, as chuvas fortes, embora mais frequentes, haviam sido rebaixadas à posição de mero contratempo cotidiano.
[Enter]
31/03/2029 Edição 17844
Reportagem Especial
A Ilha
De uma cidade brasileira em expansão, a ilha converteu-se numa concessão privada de uma companhia estrangeira, ao fim de uma década de transformação violenta. O antigo nome da ilha, abandonado havia mais de um século, foi restaurado com uma surpreendente atualidade para a nova situação: Desterro. Nunca, em seus mais de três séculos de história, a cidade havia assistido a uma transferência tão rápida e dramática de populações. Quase ninguém ficou onde estava.
O aviso veio pouco antes da década fatal. Depois de um século XX traumático, em que o mundo aprendeu a temer a guerra, um novo alarme global soou nos primeiros anos do século XXI: o clima do planeta estava mudando mais rápido do que previam os cientistas mais pessimistas. O mar elevou seu nível em nove metros. O derretimento das geleiras do Ártico resfriou as correntes marinhas no Atlântico Norte, congelando o norte europeu.
Tais mudanças globais, ocorridas no veloz espaço de meia década, aceleraram a roda da história e transformaram completamente uma cidade instalada numa ilha costeira da América do Sul. A inundação de grandes áreas inviabilizou a ilha como espaço urbano. O grande aterro no acesso ao centro da cidade desapareceu sob vários metros de mar e as duas pontes paralelas de acesso à ilha tornaram-se inúteis.
A economia local, baseada em grande parte no turismo, entrou em colapso. A capital do estado foi transferida para Blumenau. Traficantes de drogas tornaram-se os governantes efetivos de grandes áreas. A ilha deixou de ser uma cidade para se transformar num pontilhado urbano disforme. Sem lei, sem governo, sem esperança.
(continua...)
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